20.7.14

O meu Aurelião

O que tinha antes dele era um arremedo de dicionário. Não impunha respeito. Era dicionariozinho não só já amarrotado, como não trazia em si aquela aura enciclopédica. Serviu, no máximo, para os primeiros anos, para o que se chamava de ginásio. Quando o Aurelião me chegou em mãos foi uma festa para os olhos, o tato, o olfato e o palato que se deliciava com aquela dispensa repleta de palavras. Convivi com ele durante muitos anos. Silencioso, reservado, estava sempre disponível, era costumeiramente sábio. Abri-lo era sempre bom. Não só por encontrar o significado da palavra que procurava, mas por descobrir outras, sem querer, só por folhear as páginas e deixar que os olhos caíssem nas armadilhas das linhas ainda não lidas, que era o que ele mais oferecia. Quanto mais ele "amarelava", mais respeitoso e digno se mostrava. Como não era de edição ilustre, um dia, sem mais nem menos, sua capa começou a soltar-se. Aquela ferida tão visível impôs um manuseio ainda mais cuidadoso. A fragilidade da capa preta exibia contorno de conquista de batalha, de medalha, com o perdão da rima o meio da prosa, que isso é coisa bisonha. Mas como tudo, digamos, passa, como se diz indefinidamente, transformando a matéria do que foi vivido em citação vazia ou memória esquecida, o Aurelião ficou no exílio de um canto empoeirado. As visitas a ele reduziram-se. O tempo, esse que dizemos que passa, nos afastava. E, mais do que isso, para ocupar o seu papel surgiram os dicionários que não amarelam, que não juntam poeira, que não perdem a capa e ficam com a página de rosto exposta. Não há como saber ao certo qual foi o seu destino. Não foi doado a uma escola, não jogado no lixo ou incinerado. O meu Aurelião simplesmente desapareceu. Ou, como ele sugeriria na definição mais correta, cessou de existir, escondeu-se para sempre do brilho ofuscante da realidade.

19.6.14

Os Calunialistas



Os calunialistas são colunistas da imprensa que se tornaram notórios por suas investidas contra tudo que signifique PT. Formam o que se costuma chamar, no jargão da blogosfera, de PIG (Partido da Imprensa Golpista), porque querem, literalmente, derrubar o governo. São os expoentes da doença ideológica chamada anti petismus, que é provocada pelo vírus aegis odiosus direitistis, primo do famoso anti comunismus, que foi disseminado no século XX durante a Guerra Fria. Eis aqui alguns deles, devidamente esquartejados.

Piolho Mainardi
Descende da famosa casta da elite branca de São Paulo. É um irado lacerdinha. Já foi um dos mais ativos detratores do PT, principalmente de Lula, ao qual denominava "a minha anta", na revista Veja. Depois de aumentar as vendas da revista e faturar com livretos, admitiu que era tudo montagem para catapultar a morta coluna que mantinha até então, que falava de arte e cultura. Tentou ser economista, tentou ser escritor, tentou ser cineasta, tentou ser jornalista. Hoje é bem casado e faz pontas no programa de variedades Manhattan Connection, tentando ser um Paulo Francis.

Reinaldo Azedo
O próprio cão chupando manga que virou xepa de feira. Cospe ódio pelos olhos e vomita o fogo da inveja na busca de argumentos que justifiquem seus delírios contra quem se atreve a pensar fora da sua cartilha. Processa todo mundo. Veja bem, nunca ganha.

Olavo Barril de Carvalho
O nome diz tudo. Estrutura argumentos tão poderosos como o de um gambá no auge do delírio verbal no boteco ali da esquina. Fuma sem parar até mesmo em seus vídeos no YouTube. Conquista fãs entre os incautos que confundem demência com inteligência. Projeta o ar de um sábio decadente.

Arnaldo Chator
Luz, câmera, ação. Vai falar o ex-comunista do CPC com seu eterno tom de flash back e recalque panorâmico. Devoto de Nelson Rodrigues, já fez várias crônicas tanto sobre sua iniciação sexual como sobre o que seria o delírio da classe média alta carioca tentando organizar o povo para uma revolução esquerdista. Seus filmes são chatos.

Luiz Felipe Pondé, o imponderável
Tido como polêmico, provocante, genial. Diz-se filósofo. Na verdade, é um bruxo da superficialidade neurolinguística. É capaz de fazer um artigo sobre a necessidade de uma direita festiva como forma de seduzir mulheres. E continua sem comer ninguém.

Lobão, o locão
Lobão é pirado desde a sua célula mater, mas isso nem vem ao caso. Como roqueiro divertiu muita gente nos anos 80. Mas depois pirou de vez. Chegou a apoiar Roberto Freire, candidato do Partido Comunista Brasileiro à presidência da República, pensando que se tratava de Roberto Freire, o psiquiatra, escritor e anarquista que criou a teria Soma, baseada no tesão. Combateu o jabá nas rádios, a imprensa do disco e, aos 50 anos, fez um livro sobre tudo isso. Sua melhor fase talvez tenha sido a de drogado.

Danilo Gentili, o mau humorista
Foi crente, pastor, algo assim. Aquela voz fininha é chatíssima. As piadas são de mau gosto. É um mistério como ele consegue tanto sucesso. Daria um bom aluno da Escolinha do Professor Raimundo, se o saudoso Chico Anisio ainda estivesse por aqui. Deve ir para a Globo e sumir dentro da grade de programação. Felizmente.

Guilherme Fiuza
É casado com a socialite, escritora, escandalosa e gostosa Narcisa Tamborindeguy, que é herdeira do petróleo da Bacia de Campos. Isso justifica muita coisa. Mas não explica.

Rodrigo Constantino
É economista, presidente do Instituto Liberal e um dos fundadores do Instituto Millenium. Foi considerado em 2012, pela revista Época, como um dos novos trombones da direita. Entre outras coisas, defende a privatização da floresta amazônica, o livre mercado de órgãos humanos. Considera-se uma luz na escuridão. É o contrário.

Demétrio Magnolia
Parece o Fausto Fawcet. Mas é mais feio ainda. Na faculdade, foi militante da Libelu, tendência de esquerda de orientação trotskysta. De lá pra cá se esforçou bastante e conseguiu piorar.

5.6.14

Eu te conheço

A sala de espera do oftalmologista está naquele clima de qualquer sala de espera do mundo, seja qual for o seu conteúdo. Além da secretária, há dois pacientes que misturam sensações de marasmoe urgência - será que vai entrar mais alguém pela porta da frente ou quem está lá dentro do consultório vai finalmente desocupar a moita? Os pacientes já abandonaram os celulares e folheiam revistas na tentativa de encontrar algo que os distraia. Ao desviarem da paisagem das páginasamarrotadas com uma sucessão de celebridades sorridentes e felizes, cruzam olhares curiosos. Até que, para interromper o tédio e jogar papo fora, como que por geração espontânea, começa um bate-papo entre eles.

- E aí, tudo bem?
- Opa!
- Cara, eu acho que te conheço.
- Engraçado, eu estava aqui pensando a mesma coisa.
- O teu rosto não me é estranho.

- O teu também não.
- Mas não consigo saber de onde.  Colégio, faculdade, festa. Tu não é primo da...não, acho que não.
- Quem sabe não é da internet?
- Pois é, pode ser. Tudo hoje é internet, todo mundo está na internet, a internet é o mundo todo. Pegou o tempo do Orkut?
- Não. Direto pro Facebook.
- Facebook, claro!  
- Tenho perfil com mais de mil e quinhentos amigos e uma fanpage de piadas com...bom, com um número razoável de seguidores. 
- Legal. Mais de mil e quinhentos amigos, amigos, amigos mesmo? 
- É. Sabe como é, tem o amigo do amigo do amigo do Face. Pode ser daí que tu acha que me conhece, que a gente acha se conhece.
- Tem blog? 
- Tenho, mas hoje tá meio glub, glub, glub...

- Como assim?
- Está à deriva, acho até que já afundou.
- Youtube? Um daqueles vídeos em que o cara fala, fala... 
- Não sou disso, não. 
- Twitter?
- Abandonei os 140 caracteres. É tititi e tietagem demais. Tenho mais o que fazer.
- Já sei! Linkedin! 
- Difícil. Tô muito bem empregado, não preciso dessas coisas.
- WhatsApp.
- No meu WatsApp só tem os mais chegados. Impossível. 
- Pinterest!
- Printer o quê?


Nesse instante, o paciente que estava sendo atendido sai do consultório lacrimejante, esfregando os olhos. A secretária, então, pede que o próximo se dirija para lá. Um dos dois se levanta - não, não importa qual - e vai. Num último olhar entre ambos, o que está sentado dá um salto da cadeira e dispara.


- Lembrei!
- Lembrou?
- Claro. Eu te conheço daqui, do consultório mesmo, foi no ano passado, eu acho, a minha última consulta. 
- Impossível. Primeira vez que venho consultar.
- Então deve mesmo ser da internet. Vou fazer uma busca mais refinada. Eu sei que te conheço de algum lugar.
- Beleza. Agora deixa eu ir lá que está mais do que na hora de eu botar óculos.
- E eu preciso ajustar o meu. Estou ceguinho, ceguinho.

27.5.14

Frases sobre frase

Uma frase inteligente nunca volta atrás. Ela reconhece redundância de longe e sabe que sempre vai ter um espertinho por perto pra dizer “isso é pleonasmo, hein!”

Se a frase é grande, o tombo pode ser ainda maior. 

Frases curtas usam minissaia.

Frase tem fases boas e outras que são meros trocadilhos.

A frase é gente como a gente. Vai em frente porque não sabe direito onde será o ponto final.

Uma vez escrevi uma frase tão bonita que me apaixonei, mas ela era muito adversativa.

Frase mal escrita até tem corretivo. O autor, provavelmente, não.

No início era o verbo, mas também podia ser o sujeito, o predicado ou o objeto. Frases boas não acreditam no Deus da sintaxe.

Eu tive um professor de português que merecia a flechada de uma frase definitiva no meio da testa.

Toda frase tem o sujeito que merece.

Frases comem gente, sim, mas geralmente quando estão vestidas de versos.

As frases do Milllôr eram as mais gostosas. E só davam pra ele.

Frase taxativa é aquela que finca.

Parir frases é hermafroditismo.

Eu adoro fazer frases, não tanto pela qualidade do produto. É mais pelo esfrega-esfrega mesmo.

Ainda bem que não existe teste de paternidade de frase.

Uma frase definitiva? A próxima.

25.5.14

Filosofia de boteco

A filosofia de boteco é tão importante para a sociedade que deveria ser elevada à categoria de corrente filosófica, aquela que mistura romantismo e diletantismo com alcoolismo. Todos os outros ismos são bem-vindos, mas o filósofo de boteco é, antes de tudo, um idealista em estado de decantação.
Ele apura seus pensamentos numa sucessão de argumentações invariavelmente caóticas que dificilmente progridem ao ponto de alcançar uma conclusão satisfatória. Em outras palavras, ele pira, vai e às vezes não volta, mas faz escalas, pega descaminhos e prossegue a sua viagem à deriva e errante.
Esse é o método, por exelência, que percorre todo o seu discurso. Interessa ao filósofo de boteco, em todas as suas digressões, fazer-se ouvir pelos presentes, embebê-los em seu conhecimento para levá-los a concordar com ele e, imediatamente, desautorizá-los a frequentar esse estado de graça por muito tempo. A filosofia de boteco vive da discórdia, jamais do consenso, que só pode existir na forma humana de um abraço ou um beijo.
Nos dias que correm, no entanto, o filósofo de boteco enfrenta sérios problemas para exercer a sua atividade. E isso não tem a ver com problemas metafísicos. Na verdade, estão mais próximos dos problemas quânticos, ou seja, a quantidade deveras volumosa de pessoas que se acotovelam nos bares com seus telefones e selfies, nos "nivers" e encontros do pessoal da firma.
Mas não há de ser nada. O filósofo de boteco é um sobrevivente. A ele mesmo, a seus vícios e à sociedade, desde que ela não promova a extinção do balcão do bar ou da mesa de canto, onde ele pode apoiar-se em seus cotovelos e mirar o copo à sua frente como um objeto de adoração quase religiosa.

20.4.14




19.4.14

posporopopós


cansei do tal do twitter
vou pichar frases pela cidade 
as opiniões mais estúpidas
as gracinhas mais ligeiras
e uma lista infinita de besteiras

larguei o facebook de mão
convoquei os amigos para a rua
vamos espalhar fotos de cães e gatos 
distribuir notícias falsas nos sinais
colar nos muros denúncias levianas

estou farto do youtube
quero ir ao cinema 
me conectar com o escuro

foda-se o flickr o tumblr o meme
o bloglubglubglubglub
o google + ou -

demiti o linkedin
toma aqui o meu currículo
me arranja um emprego
que não dependa de mil conexões

tô fora do whatsapp
não quero instagram o mundo

cansei
me fartei
mandei à melda

- voltei
afinal sou posporopopós-moderno

p.s.: o mundo continua o mesmo, só que diante das câmeras